Atraídos por salários, a chance de apagar o passado e aventuras, dezenas de brazucas alistam-se, todos os anos, no legendário exército de aluguel francês. Nossa repórter conseguiu deles revelações sobre a condição de soldados de um pátria alheia, em missões cujo sentido desconhecem
Por: Maranúbia Barbosa
Brasileiros jovens estão pondo a mochila nas costas e deixando o país para se alistar na Legião Estrangeira — unidade de elite do exército francês, composta por cerca de 7 mil estrangeiros de mais de 130 nacionalidades diferentes. Estima-se que pelo menos cem brasileiros são contratados a cada ano pelo legendário exército que defende os interesses da França mundo afora, sobretudo em áreas conflituosas.
O número exato de brasileiros não é divulgado pela Legião Estrangeira. Porém, de uns cinco anos para cá, a procura tem aumentado, mesmo sabendo que ao vender seus serviços para a França estão se expondo a riscos de morte.
Medo parece não ser problema para os brasileiros e, muito menos, para outros estrangeiros. Todos os anos, mais de 5 mil candidatos do mundo inteiro batem à porta desta composição militar. Mas somente cerca de 800 deles conseguem dar conta de passar pela bateria intensiva de testes físicos e psicotécnicos.
Essas informações são dos próprios legionários, entre os quais o brasileiro Marcos dos Santos, 32 anos. Natural de Itapira (SP), ele serve, há três anos, no 2º Regimento Estrangeiro de Pára-quedistas (REP) — tropa considerada crème de la crème da Legião — em Calvi, cidade na ilha da Córsega. Segundo ele, não são os polpudos salários (que vão de 1,5 mil euros até mais de 5 mil para quem prossegue na carreira), e sim o espírito de aventura, que move a maioria dos soldados. Muitos deles parecem, também, ser guiados por um velho slogan da Legião ainda em voga: "chance de mudar de vida, qualquer que seja a origem, nacionalidade, religião, diplomas, nível escolar, situação familiar ou profissional".
Nenhum candidato é obrigado a fornecer a verdadeira identidade. Incorporado, o legionário passa a ser uma "pessoa não-civil", alguém que não existe juridicamente para o mundo
Mesmo nos dias atuais, o engajamento na Legião ainda é envolto em lendas e controvérsias. Ao se alistar, o candidato não é obrigado a fornecer a verdadeira identidade e nem relatar nada do que já viveu. Ele tem o anonimato assegurado e é protegido de qualquer ingerência relativa ao seu passado, graças a um decreto-lei francês de 1911. O legionário é juridicamente uma "pessoa não-civil", ou seja, por ser portador de uma identidade fictícia, não existe de fato. Por conseguinte, não pode se casar, nem tirar carteira de motorista, nem comprar imóveis ou veículos. Em suma, o soldado só existe para a Legião Estrangeira. Independente do estado civil, ele é considerado solteiro e sem vínculos familiares. Salvo em raríssimas exceções, ele pode obter a real identidade antes do término do contrato.
Engajados por um período compulsório de cinco anos, sem nenhum direito a desistência antes do prazo, os legionários estão sujeitos a uma disciplina severa dentro e fora da caserna. Prisão por deserção, tolerância zero para toda e qualquer falta, tratamento rude — "na porrada" mesmo, segundo Santos. Essas são só algumas das condições aceitas sem pestanejar por estrangeiros que salvaguardam os interesses de uma das sete potências mundiais e que cumprem sem titubear as letras miúdas do contrato. Esse, diga-se de passagem, é assinado logo de cara, na primeira semana, mesmo por aqueles que não falam uma só palavra da língua francesa. "Assinamos um papel atrás do outro, sem tradutor nem nada. A gente entrega a vida para eles no ato", afirmou Santos.
Uma investigação minuciosa impede o recrutamento de condenados por crimes comuns, apesar de que "delitos leves" são relevados. Não existe, no entanto, definição do que a Legião Estrangeira entende por delitos de pouca importância. Pelo código da unidade, terroristas e demais criminosos procurados pela Interpol não são aceitos em nenhuma hipótese.
Asiáticos, europeus do leste e latino-americanos (com destaque para os brasileiros) somam 70% da Legião Estrangeira. Franceses mesmo, só 19%
A maior parte dos legionários, cerca de 70%, vem de países que não falam francês. Em 2005, dos 900 novos engajados, 32% eram de eslavos provenientes do Leste europeu, sobretudo da Romênia, Rússia e ex-repúblicas soviéticas. Em seguida, vieram os latino-americanos, 24,5%, com destaque disparado para o Brasil. Soldados de nacionalidade francesa ou originários de ex-colônias somaram 19%. Os asiáticos, especialmente os chineses, são numerosos.
Além dos benefícios trabalhistas, sociais (férias, seguro-saúde e conta em banco, por exemplo) e toda a documentação concedida por um país conhecido por respeitar os direitos do homem, eles ainda podem requerer a cidadania francesa ao cabo dos cinco anos de serviço. O direito é assegurado por lei, bastando para isso apresentar um atestado de boa conduta expedido por um comandante da Legião Estrangeira às autoridades competentes.
Os legionários recebem seus vencimentos quase que totalmente livres de despesas. As refeições feitas no quartel são gratuitas de segunda a sexta-feira, e nos finais de semana pagas à parte (cerca de 4 euros – cerca de 10 reais). Aos salários iniciais, em torno de mil euros para quem serve no continente e de 1,5 mil para os alojados na ilha da Córsega, juntam-se os prêmios e bonificações pagos, quando os soldados partem em missões fora do território francês. Conforme o caso, os soldos podem até triplicar.
A reportagem tentou por diversas vezes contato por telefone e email com um dos quartéis da Legião Estrangeira na região de Paris, mas não foi atendida.
Desde que ingressou nas fileiras da Legião Estrangeira, em maio de 2005, o ex-piloto de helicóptero Marcos dos Santos já partiu em missões de prevenção em países como o Djibuti e Costa do Marfim (na África), e Nova Caledônia, possessão francesa na Oceania. Segundo Santos, os legionários recebem as instruções sobre o que vão fazer poucos dias antes do embarque. As missões duram de três a quatro meses.
Viajar sem conhecer o país de destino, os problemas lá vividos ou os interesses da França no local não é problema. "Somos mercenários", afirma legionário brasileiro
Santos disse que o fato de viajar às cegas, sem conhecer com detalhes os problemas políticos e sociais dos países para onde é mandado, sem entender bem porque a França envia tropas para lá, fere sua ética, mas não chega a lhe tirar o sono, e pelo jeito nem o bom humor. "Somos mercenários, esqueceu?", comentou, rindo.
Santos deixou uma vida financeira e profissional estável no Brasil e desembarcou no aeroporto Charles de Gaulle, em Paris, indo direto ao quartel Fort Nogent, em Fontenay sous Bois, cidade na periferia leste da capital francesa. Tinha a frase em francês decorada na ponta da língua: "Eu quero me alistar na Legião Estrangeira". Ele passou por exames médicos e psicotécnicos durante uma semana. "Eles querem ver se o sujeito é muito retardado", satirizou.
Na Legião, Santos, divorciado e pai de um menino de oito anos, teve mantida a nacionalidade brasileira, mas ganhou outra identidade: Roberto da Silva, literalmente seu nome de guerra. Depois da pré-seleção, foi levado para o quartel de Castelnaudary, na cidade de Aubagne, sul da França, onde ficou quatro meses sendo submetido, continuamente, a uma série de rigorosos testes físicos e psicológicos.
O legionário disse que a experiência em Aubagne beirou os limites do suportável. Conforme Santos, quem não tem muita estrutura emocional "bate os pinos cedo". A pressão a que são submetidos é intensa, relatou. "Assim que chega, a gente é obrigado a aprender os hinos e o código de honra da Legião em francês, repetindo as frases como papagaio, sem saber o que está cantando, como numa lavagem cerebral. E debaixo de pontapé". Santos contou também que o candidato que não decora direito as letras do hinário é obrigado a passar a noite fazendo flexões e lavando banheiro.
Nos finais de semana, folga e direito de ir à cidade. Mas nada de discotecas, baladas com mulheres ou bares mal-afamados. "Somos controlados. Temos que ter um comportamento exemplar"
Dono de uma saúde perfeita, Santos pôde se dar ao luxo de escolher onde iria servir na Legião. E ele escolheu justamente o regimento mais difícil — o dos paraquedistas, os mais expostos em situações de combate. "Eu sabia que era ralação, mas quis assim mesmo. Por aventura. Verdade mesmo", garantiu, sério.
A rotina na ilha da Córsega, contou Santos, se resume a fazer faxina, cuidar das fardas, lustrar botas, praticar exercícios físicos e estar sempre "ligado", pronto para ser chamado a qualquer hora do dia ou da noite. Nos finais de semana, impecavelmente uniformizados, os legionários são liberados para ir à cidade, apesar de que nem tudo o que diz respeito à vida mundana é permitido. Nada de discoteca, de baladas com mulheres ou bares mal afamados. "Somos controlados. Temos que ter um comportamento exemplar", acrescentou.
Ainda que convicto do que faz, Santos não recomenda a ninguém o alistamento. "Não me arrependo. Queria conhecer o mundo, me aventurar. Ninguém morre antes da hora. O que não posso fazer é enganar os que querem vir, dizer que isso aqui é fácil. Eu mesmo não sei te falar se vou agüentar até o fim. Tem uns caras que não suportam e caem fora", alertou. O legionário disse que não sabe se vai pedir a cidadania francesa. "Não faço planos", concluiu.
Caso fique até o final do contrato, que termina em dois anos, Santos pode trazer para casa, por baixo, mais de 50 mil euros. Para isso, além de economizar, ele ainda tem que sair ileso de missões em países como o Gabão, Afeganistão, Kosovo ou qualquer outro lugar do mundo onde estoure um conflito que afete a França.
Legionários são heróis na França
Se quiser pisar nos calos de um francês, experimente chamar os legionários de mercenários ou de vira-casacas. Esses soldados estrangeiros são considerados filhos da França, não por laços biológicos, mas pelo sangue que derramaram em nome dessa nação européia, conforme bordão propagado dentro da própria Legião. Desde 1831, quando esse exército foi criado pelo rei Luís Felipe, mais de 35 mil legionários já morreram, em dezenas de batalhas mundo afora.
Dentre todos os conflitos, nenhum ficou mais célebre do que o de Hacienda Camarone, no México. No dia 30 de abril de 1863, uma patrulha composta por 62 legionários e três oficiais, liderada pelo lendário capitão Danjou, enfrentou três batalhões de infantaria e cavalaria mexicanos. Do confronto desigual restaram somente três legionários. Acuados, armados apenas com baionetas, eles continuaram dispostos a lutar até o fim, sem nenhuma intenção de se render. Impressionados com a bravura dos soldados, os mexicanos liberaram a saída deles, que só aceitaram com a condição de resgatar o corpo de Danjou e a bandeira da Legião. O chefe dos mexicanos teria dito: "Eles não são soldados, são demônios."
Os despojos do capitão Danjou foram levados à França, sendo que a mão de madeira do oficial (ele usava uma prótese desde que fora mutilado em uma batalha) é exposta todo ano no museu da Legião, em Aubagne.
Depois de Haciendas Camarone, os legionários já lutaram em todos os principais conflitos armados da era contemporânea, entre os quais a guerra da Argélia, da Indochina, as duas guerras mundiais, Somália, Ruanda, Congo, Iugoslávia, Afeganistão, e muitos outros. Reputados, sobretudo, pela coragem e lealdade, os legionários seguem à risca os sete artigos do código de honra: servir, honrar e ser fiel à França; ser solidário aos companheiros; respeitar as tradições, a hierarquia e a disciplina; portar a farda com elegância; não descuidar da forma física; executar a missão até o fim, mesmo que isso custe a própria vida; não deixar que a paixão e o ódio lhe subam à cabeça, respeitar os inimigos vencidos, não abandonar jamais os companheiros mortos, nem os feridos, e muito menos as armas.
Segundo pesquisas divulgadas pela própria Legião Estrangeira, os soldados que se alistam procuram sobretudo uma ruptura com o passado. Cerca de 80% dos recrutas têm problemas de ordem social ou familiar, e só 20% são motivados por ideais. A Legião tem um índice baixíssimo de delinqüência, se comparado ao exército oficial francês. O índice médio é de 0,08% (199 delitos), contra 0,61% do efetivo oficial.
A Legião Estrangeira é composta por 10 regimentos: sete locados em território francês; um instalado em Kourou (Guiana Francesa), um em Mayotte (ilha francesa), e outro em Djibuti, na África.
Fonte: Maranúbia Barbosa do Le Monde/Edição João Carvalho
Missões da Legião Estrangeira
Operations
1832
First fights against Abd El Kader, Algeria
1835
battle of Barbastro [1837], Spain
1844
Victory: M'Chounech (Aures) 2nd Etranger lead by the duc d'Aumale.
1854 - 1856
Sebastopol and the death of Colonel Viénot, Crimea
1859
Victories of Magenta and Solferino, Italy
1863 - 1867
Mexico April 30th 1863: Camerone
February 28th 1866: Santa-lsabel
March 1867: Return to Algeria
1870 - 1871
Victory of Coulmiers: First fights of the Legion in France, French German war
1883 - 1885
January 1883: Sontay
February 1885: Langson, Tonkin (Indochina)
1885
Formosa
1892
Dahomey
1893 - 1894
Sudan
1895 - 1904
Madagascar
1900 - 1918
Morocco
1914 - 1918
World War I
1922-1923
Battle of Taza, Morocco
1925
Campaign against Abd El Krim, Rif
1933
End of war, Morocco
1939 -1940
World War II
Fights in France
1940 - 1945 13th DBLE
Narvik, Norway
May 1940: Rallying to the French Forces in Great Britain
1941 campaign of Eritrea
campaign of Syria
1942 February-June: Bir-Hakeim, Libya
El Himeimat
Death of Lieutenant Colonel Amilakvari
1943 Campaign of Tunisia
1944 Campaign of of Italy
1944 Operation Dragoon: Landing in the south of France
1944 - 1945 Campaign of France and Germany
1946 - 1954
Indochina
1948: Phu Tong Ha
1949 - 1954: Fights of the RC 4 (RC = Route Coloniale = Colonial Road)
September 1950: Dong Khe
October 1950: Cao Bang
October 6th-8th 1950: Tragic fights of Coc-Xa
1952: Hoah Binh. Fights of the RC 6 and Black River
1953: Na-San. November, installation of the Dien Bien Phu's Camp
1954 May 7th: After 5 months Dien Bien Phu falls
1954 - 1962
Algeria
1954 November 1st: beginning of the Algeria's War
1957 Battle of Algiers
1958 Battles at the borders of Algeria
Death of Colonel Jean-Pierre (1st R.E.P)
1961 Putsch of the Generals. Dissolution of the 1st R.E.P
1956
Suez' Expedition, Egypt
1969-1970
Chad
1978
The 2nd R.E.P parachutes into Kolwezi to protect and save 2,000 Europeans after the Katanga rebellion, Kolwezi, (Zaire)
1978-1980
Chad
1982
Protecting the retreat of the PLO, Bayreuth Lebanon
1983
Bayreuth, south of Lebanon
1983
Chad
1986-1994
Chad
1990-1991
Rwanda (Zaire)
1991
Operation Desert Storm
The Legion captures the town and airport of As-Salman, Gulf War
1992
UN Mission, Cambodia
1992-1993
Humanitarian mission, Somalia
1993
UN Mission, Bosnia
1994
Humanitarian mission, Rwanda
Fonte: Specwar
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