14 agosto 2013

NA MIRA DO ANJO DA MORTE

 

Kyle em ação, durante a guerra do Iraque

A MULHER QUE PASSEIA pelas ruas de Nassíria, a 370 km ao sul de Bagdá, parece inofensiva. Ela caminha vagarosamente, observa o movimento na rua até seus olhos encontrarem um grupo de fuzileiros navais americanos. Repentinamente, sua expressão muda, os passos aceleram e ela saca uma granada, pronta para explodir.

Mas seus movimentos são acompanhados pela mira do atirador Chris Kyle, um novato nessa arte, estrategicamente posicionado no alto de um prédio. O garoto não havia sido treinado para matar mulheres, mas recebe a ordem de seu comandante. “Atire!” Kyle titubeia. Será que isso é certo? O comandante repete: “Atire!” Uma pressão de leve no gatilho, a mulher cai. A granada explode. Um novo tiro se segue. “Eu odeio o fato de ela ter me colocado naquela situação em que eu tive de atirar”, explica à Status. “Foi meu primeiro tiro no Iraque, e eu tive de tirar a vida de alguém. Não só tive de vencer uma batalha interna para decidir se eu era mesmo capaz de matar alguém, como, para piorar, ainda era uma mulher”. Essa cena se passou em 2003 e, de lá para cá, Kyle, 37 anos, nunca mais vivenciou um dilema como esse. Pelo contrário, se tornou uma máquina de matar: segundo sua contagem, 255 pessoas sucumbiram à sua implacável mira. De acordo com registros oficiais do Pentágono, entretanto, foram 150. Qualquer que seja o número, Kyle é, indiscutivelmente, o atirador mais letal das Forças Armadas dos Estados Unidos, uma espécie de anjo da morte, idolatrado no Exército e personagem central do livro American sniper, lançado no mês passado, em que reúne suas memórias.

Status conversou com esse personagem para entender o que se passa na cabeça de um homem com tantas mortes nas costas. Algum remorso? “Matei pessoas que eram do mal”, diz Kyle. “Quando eu for me encontrar com Deus, há muitas coisas pelas quais vou ter de responder. Ter matado aquelas pessoas não é uma delas”, completa o oficial, sem qualquer pudor em apresentar uma consciência tranquila. Kyle é um atirador de elite das forças especiais Seal – uma combinação das palavras sea, air e land, ou mar, ar e terra, em alusão aos terrenos onde combatem – da Marinha dos EUA. Sua companhia, Charlie, foi uma das primeiras a desembarcar na península de Al Faw, no fim de março de 2003, na primeira fase da guerra decretada pelo então presidente, George W. Bush. Na época, seu primeiro filho tinha acabado de nascer. Kyle, um texano que aprendeu a usar um rifle aos oito anos de idade, atuou como atirador no Iraque em quatro missões, ao longo de cinco anos. Na última, em 2008, era pai recente de uma menina.

Medir a distância. Calcular o ângulo. Observar o vento. Manter a disciplina. “Se vou matar alguém, espero um dia, uma ou duas semanas”, conta Kyle

Kyle não parece o tipo durão que povoa o imaginário em relação aos Seals. Afinal, foram soldados dessa divisão que liquidaram o líder da Al-Qaeda Osama bin Laden. Foi o sexto grupo dessa força especial, o Team 6, que invadiu, em maio passado, uma residência no Paquistão e matou o mandante dos atentados de 11 de setembro de 2001, em Nova York. Mas, ao telefone, Kyle é o oposto disso.Ele é moderado, educado e extremamente respeitoso, costuma usar as expressões muito usais entre militares (“yes, sir”; “no, sir”). Desde jovem, diz Kyle, nutriu dois sonhos na vida: tornar-se caubói de profissão ou soldado. Foi peão até um acidente sério com um touro lhe tirar a perspectiva de futuro na competição. A pedido dos pais, entrou para a faculdade. Viu essa fase da vida como um período para beber e se divertir, antes de abraçar a guerra. Aos 24 anos de idade, achou que estava na hora de defender seu país.

Exterminador
“Defender” é uma palavra quase inapropriada para uma guerra assimétrica como foi a do Iraque. Não que as tropas ianques tenham ido a passeio: Fallujah, Ramadi e Sadr City viram algumas das mais sangrentas batalhas da guerra, cortesia da insurgência iraquiana. Kyle esteve lá e deixou sua marca. Na primeira, contou 40 insurgentes mortos por seu rifle; na segunda, aterrorizou o inimigo de tal maneira que ganhou o apelido de “Diabo de Ramadi”. Conhecido pelos colegas como “A Lenda” e “O Exterminador”, fez tanto estrago que os inimigos iraquianos colocaram uma recompensa de US$ 80 mil pela sua cabeça. Um de seus colegas chegou a receber um valor maior, o que o deixou – acredite – levemente enciumado. O tempo mostrou, porém, que não havia motivos para isso. Kyle é um matador equiparado aos mais selvagens dos animais – não pelo seu estilo, mas pela técnica.

Kyle (sem camisa) aos quatro anos, posa com um rifle

Saber atirar bem é apenas uma pequena parte das habilidades necessárias. O mais importante, explica, é manter certa intimidade com a presa: observar como se move, como se comporta, seus trejeitos. Medir a distância. Calcular o ângulo. Observar o vento. Manter a disciplina. “Se vou matar alguém, espero um dia, uma ou duas semanas”, conta Kyle. Psicologicamente, os atiradores de elite são como soldados perfeitos, matadores convictos. Uma bala, uma vida. Uma impressionante estatística indica que, durante a Guerra do Vietnã, a infantaria americana disparou cerca de 50 mil tiros para cada soldado vietcongue derrubado. Os atiradores de elite registraram uma média de 1,39.

“Na hora, você precisa deixar de lado o viés humano e pensar que o inimigo é do mal”, ensina Kyle. “Você precisa salvar alguém, fazer aquilo e ir embora.” Ele alude ao fato de, curiosamente, os atiradores de elite estarem em uma função defensiva por natureza. Na guerra urbana, como em Bagdá ou Fallujah, a posição típica de um sniper é no topo de um edifício, de onde pode adotar uma visão privilegiada e dar cobertura aos soldados que estão no chão. Como todo atirador, Kyle foi treinado para pensar dessa forma, o que talvez explique a tranquilidade com que fala de seu currículo. “Para mim, ser um atirador não significa matar pessoas, porque na maioria das vezes eu estava protegendo outras”, resume. Indagado se todas as suas vítimas mereciam mesmo o trágico destino, ele é enfático. “Sim, definitivamente. Foi culpa deles. Eles estavam tentando perpetrar violência contra os soldados americanos, civis iraquianos ou aliados dos EUA. Tive de matá-los”.

Kyle com seus colegas de exército

Enviado divino
Mas ninguém vai parar na tropa de elite – e ainda mais na tropa de elite da Marinha americana – por acaso. Kyle gosta de guerra. “Quando você é pago para matar alguém, começa a ficar criativo”, diz ele em suas memórias. Uma de suas maiores proezas foi ter alvejado o inimigo a quase 1,5 km de distância, do outro lado de um pântano à beira do rio Eufrates, nos arredores de Fallujah. O tiro deixou seus colegas embasbacados. “Deus soprou aquela bala”, diz ele. Um enviado divino? “Não quero dizer que Deus matou aquele homem, apenas que tive muita sorte. O Sol, a Lua e as estrelas se alinharam e eu consegui acertar um tiro que jamais conseguiria”. Anos depois, conseguiu novamente. A quase 2 km de distância, quando um corpo humano não passa de uma silhueta mesmo em uma mira poderosa, Kyle derrubou um homem que se preparava para lançar um foguete contra um comboio americano. “Levou uns quatro ou cinco segundos para a bala sair do meu rifle e atingir o homem”, descreve Kyle. Foi um recorde pessoal – o recorde mundial para um tiro de sniper é cerca de 2,5 km.

Em abril de 2008, em sua quarta viagem ao Iraque, beirando as 200 mortes, Kyle se sentia invencível. Mas uma noite em Sadr City, um subúrbio pobre nos arredores de Bagdá, o fez mudar de ideia. Passava da meia- noite e o atirador fazia parte de um grupo de cerca de 30 militares que, obedecendo às ordens dadas contra todo bom-senso, caminhava pelas ruas estreitas de uma favela. Kyle e seus colegas se aproximaram de uma casa e pediram que um homem abrisse a porta. Mas o homem correu. Os militares arrebentaram o portão e entraram para vasculhar a casa. Os dois primeiros andares estavam vazios. Ao chegar ao terceiro piso, um quarto cuja sacada dava para a rua, Kyle parou na soleira para deixar os colegas passarem. Naquele momento, uma explosão balançou a sala. “Granada!”, alguém gritou. À distância, insurgentes utilizavam um lançador para o ataque.

Os soldados se reagruparam. Balas cruzavam os ares de Sadr City. As paredes da casa eram muito finas para aguentar o ataque. “Para fora!” Quando os soldados saíram à rua, uma bomba explodiu, fazendo o chão tremer. Os ouvidos zumbiam. Quando tentou invadir outra residência para se esconder, um tiro atingiu Kyle na cabeça. “Foi minha primeira noite em Sadr Cit e parecia que seria a última na Terra”, relembra. Por sorte, a bala pegou no capacete, ricocheteou nos óculos de visão noturna e escapou. Mal tentou se levantar, Kyle foi atingido por uma rodada de tiros nas costas, que foram contidos pelo colete à prova de balas. Dois tiros na mesma ação, duas vezes renascido. Foi a primeira vez que o atirador percebeu, de verdade, que era mortal. Passou a sofrer de pressão alta e vivia psicologicamente abatido. Naqueles últimos dois anos, a guerra havia lhe cobrado seu valor de face. Em 2006, seu pelotão já havia perdido dois soldados, que para Kyle eram como irmãos. Marc Lee havia sido baleado durante uma batida noturna a uma casa, e Ryan Job perdera a visão quando um tiro de sniper atingiu seu rifle e mandou estilhaços que lhe penetraram o olho. Morreu alguns anos depois por complicações de uma operação. Kyle estava ao lado dos dois quando os incidentes aconteceram. Até hoje, fica monossilábico quando fala deles. “Yes, sir; no, sir”. O tom fica embargado e os detalhes desvanecem.

Mas não foi o estresse do trabalho que o fez decidir abandonar a guerra. A pressão veio mesmo de casa: sua filha recém-nascida havia sido diagnosticada com leucemia e podia morrer a qualquer momento (o diagnóstico, porém, foi revisto depois, e a doença, descartada). O caubói atirador, para quem o lema Deus-pátria-família era o que mais lhe importava na vida, precisava mudar a ordem de suas prioridades. Ele diz que, agora, “a família está firmemente acima do país”. Ainda assim, o retorno não foi fácil. “Eu achava que ia voltar para casa e que esse seria o momento mais feliz da vida, mas, na verdade, Taya estava levando a vida dela e a casa. E de repente chega esse estranho”, conta. Mais de três anos depois, a agitação inicial e o estresse com os pequenos obstáculos cotidianos passaram, e hoje ele dá aulas de tiro para novos iniciantes. Mas o “diabo de Ramadi” confessa que ainda tem pesadelos – não com as 255 “presas”, que fique bem claro. “Tenho pesadelo com as pessoas que eu não consegui salvar”, diz. Será?

Na guerra urbana, a posição típica de um Sniper é no topo de um edifício, de onde pode adotar uma visão privilegiada e dar cobertura aos soldados que estão no chão

“Você  precisa tirar um pouco o lado humano da coisa e a que eles são o mal”

De sua casa, no Texas, o atirador Chris Kyle conversou com a Status. Acompanhe alguns trechos da entrevista:

Como é que você lida com o fato de ter matado tanta gente?
Tento não ver a coisa como matar gente, porque na maioria das vezes eu estava protegendo outras pessoas. Você precisa tirar um pouco o lado humano da coisa e pensar que eles são o mal.

E você tem certeza de que entre esses não havia civis?
Absoluta. Para eu dar um tiro, eles precisam estar cometendo um ato de violência ou se preparando para isso, fosse contra um americano, um aliado ou contra a população iraquiana. Eu estava ali para proteger as pessoas.

Então, quando você mata, a culpa é do alvo?
Sim, definitivamente. Ele estava tentando perpetrar violência contra os soldados americanos, civis iraquianos ou aliados dos EUA.

Qual o peso do lado psicológico no momento de atirar?
O mais importante é a capacidade de observar, de aprender sobre o ambiente ao seu redor, ver quem se comporta fora do normal. Você precisa estudar a situação. Se não consegue justificar 100% o tiro, então não dispare.

Você não tem pesadelos? Essas mortes não perturbam o seu sono?
Tenho pesadelos, mas não por causa das pessoas que matei, e sim pelas que não pude salvar. Quando seus irmãos morrem do seu lado, você leva isso para a vida toda.

O que o levou a escrever o livro?
Eu queria falar para um público mais amplo, sobretudo para os civis, para que soubessem das dificuldades que os militares enfrentam nas guerras. O livro não é sobre minhas proezas militares. Quem me critica por escrever esse livro é porque não o leu.

E o que acha das críticas à guerra do Iraque?
Nos alistamos não por uma questão política, mas porque somos patriotas. Há muitos militares que não concordam com tantas guerras, mas nós não decidimos aonde vamos. Quem não gosta, que vá criticar o Congresso, os políticos.

Fontes: http://www.revistastatus.com.br

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